segunda-feira, 31 de agosto de 2015

Clandestinas intuições


Depois de viver as mais diversas variações das suas histórias, depois de novamente acreditar que entre eles tudo já havia sido resolvido e que agora viveriam em paz para sempre, depois de desistir e acreditar que não havia mais jeito além da separação definitiva, depois do vai-e-vem só lhe restou uma alternativa, já que as anteriores nunca deram certo: virou-se pra ele e disse que um dos dois terminaria louco naquela história. Ele se tornaria louco ou a enlouqueceria.

Passou então a viver na perspectiva de observar quem se entregaria de vez à loucura, “justo numa época em que asilo para doentes mentais entra em plena extinção e devem ser acolhidos pelos esperados afetos familiares.” Em meio aos seus acessos de crises, ela olhava bem pra ele e se lembrava de tantas personagens excêntricas, reais e irreais, quase reais das telenovelas. Olhava para ela mesma, quase lhe suplicando para não ser enlouquecida, e insistia na idéia de que entregar-se à arte poderia lhe fazer um bem imensurável. Quem sabe, seria uma excelente escultora e construiria em cera ou em bronze o coração perfeito para os seus anseios, assim pensava. Ela não desgrudava, da cabeceira da sua cama, aquele livro de esculturas que atraiam o seu olhar a tantas divagações. “A Suplicante” e “O Abandono”, imagens a alimentar as distorções dos seus sentimentos e que lhe expressavam algo que ela nunca conseguia explicar.

Eles se amavam. Amavam-se muito. Era uma história de um amor tão grande que vale a pena um dia parar pra contar. Uma mistura do mito de Tristão com o mito de Don Juan. No entanto, ela já não mais sabia se valia a pena pagar por um amor o preço de uma loucura. Ele não suportou quando em um só ano ela resolveu fazer tantas mudanças em sua vida, e ele se afundava no trabalho para esquecer tudo o que, meticulosamente, imaginava como razões destas mudanças. Ela também trabalhava muito, e ele não conseguiu disfarçar que achava uma ameaça as tantas vezes que ela falava do alto cargo que a sua colega de trabalho havia alcançado. Tinha certeza de que aquilo era uma espécie de aviso para ele, alertando-lhe de que ela também chegaria lá, custasse o que custasse, e que ele, com aquela visão de que não se precisa tanto para viver, não sairia daquele “desgraçado curso supletivo”.

A mudança que ela fez em um só ano foi realmente demais para a sua cabeça. Começou a pagar as prestações de um carro novo, e inventou fazer vestibular pra Direito, e ele, para não ouvir mais uma vez que era um desmancha prazer e invejoso, por nunca conseguir passar na prova do supletivo de matemática, química e física, engoliu em seco aquela sua decisão e sofreu mais uma insônia terrível naquela noite. Ela pulou de contentamento, ligou para aquela sua colega que havia subido de cargo e pra tantas pessoas mais, quando dias depois viu o seu nome na lista dos aprovados. Ele a abraçava entre um sorriso e uma mágoa de derrota travada no peito. Com a mente rica de insinuações, enquanto parabenizava-lhe, dizia, para o seu próprio coração, que estava perdendo a sua mulher. Entregava-se a imaginações diversas, e depois vivia a angústia provocada pelas cruéis imagens das suas clandestinas intuições. Mas ela ainda o amava muito, e ainda seria até capaz de parar pra pensar se valeria a pena deixá-lo por um curso de direito. Enquanto isto, a fertilidade da mente dele já a tornara numa advogada ousada, numa juíza cheia de poder, mulher liberada, deliberada, audiências e mais audiências, e ele naquele maldito supletivo com as provas de matemática, química e física por fazer.

No primeiro dia de aula... Meu Deus! No primeiro dia de aula!... No primeiro dia de aula, ele fez questão de chegar mais cedo em casa. Ela estava tomando banho, e ele ficou ali sentado na cama, observando todas as suas atitudes até ela sair de casa. Um caderno novinho, um caríssimo livro sobre leis, comprado precipitadamente, lápis, borracha, caneta, e o rastro do seu perfume que ficou cravado em seu ciúme. Ela estava vestida como nos demais dias se vestiria para alguma ocasião daquele tipo, mas, para ele, no escondido dos seus medos, ela nunca estivera tão bonita e perfumada. Começou a pensar nos colegas e professores que ela teria, e passou a desconfiar de cada um deles. Apesar disto, ele muito se esforçou para não manifestar essas reações, receio de ser visto como criança boba, ciumenta, encrenqueira, como desde criança lhe acusavam. Meses de noites torturantes para ele, ainda mais por ter que dar mais atenção às crianças, resolver problemas pendentes, papéis, pagamentos, obrigações que ela sempre cumpria da melhor maneira possível.

Um semestre inteiro se passou, e ele nada disse, embora torcesse para que ela se percebesse incompetente, fosse reprovada em todas as disciplinas do curso, e voltasse a ter a feijoada do fim de semana como a melhor diversão da família. Ela realmente teve dificuldades nas aulas e notas insatisfatórias, porém, uma força que parecia escondida num lugar que só ela sabia, se manifestava dia após dia, e as suas notas se superavam uma após a outra. Ele aguardava cada resultado, ansiosamente. Um, dois, três, quatro. Cinco. No máximo. Eram as notas que ele desejava para os seus resultados. E estava cada vez mais difícil esconder as suas frustrações, ciúmes, mal humor, desculpas de horas extras para não mais ter que dar tanta atenção às crianças.

Entretanto, ele nunca demonstrou tanto rubor em seu rosto como no dia que ela anunciou mais uma mudança naquele ano. Uma mudança que, de certa forma, também resolveria uma das suas maiores queixas: peito flácido, peito pequeno, peito isto, peito aquilo. É verdade que ele tratava desse assunto com o maior cuidado para não magoá-la, mas, no dia em que virou para ele e “marquei minha plástica para uma semana após o inicio das minhas férias da faculdade”, ele, numa cara de completo espanto, virou-se pra ela e: “Plástica?” Imediatamente visualizou aqueles seios fartos se esfregando nos rostos dos colegas, professores e chefes. Ela anunciou os trezentos e cinquenta miligramas de silicone que estaria usando, o que foi uma espécie de morte para ele, que nada pôde dizer, se tantas vezes reclamou dos seios que ele apalpava. Para ela, aquele rubor em seu rosto era sinal de que ele estava imensamente contente, porém, em seu intimo, ele não mais a desejava atraente, e remoía “por que justo agora?!”. Para ele, aqueles novos seios eram culpa dos colegas e dos professores da faculdade, que ainda se sentiriam atraídos, seduzidos, convidados pelo belo par de peitos que contornaria ainda mais aqueles olhos bem azuis.

O semestre acabou. Ela foi aprovada em todas as disciplinas, foi eleita líder da turma, passou quase uma semana das férias, dando total atenção a ele e aos filhos. Depois colocou o necessário em uma maleta, perfumou-se, e foi fazer o seu implante. Naquele dia, ele não aguentou e muito chorou, trancado em seu quarto vazio. Dias depois, após a quinta tentativa, apesar de ter sido com nota mínima, ele conseguiu ser aprovado na prova de matemática, e nem deu a noticia a ela.

A cirurgia ficou impecável. Os seios, perfeitos. Ele queria odiá-la intensamente, mas a desejava cada vez mais. Quase não suportou o início do novo semestre escolar! Tomado por uma consternação maior, desejou gritar para que ela não usasse aquela blusa tão decotada, não usasse aquele perfume que havia marcado o primeiro encontro deles, não penteasse os cabelos daquela maneira que ele tanto gostava, e nem usasse maquiagem, justificando que a sua maior beleza era a natural. O perfume que ela deixava pela casa torturava os seus pensamentos, aumentando a sensação de que ela já o abandonava, e abandonava os filhos, e abandonava a casa, e não gostava mais de feijoada. Até em pato ao molho de vinho e ervas ela já falava, e isto o deixava intrigado.

No decorrer desse novo semestre, ela já falava em Ricardo, Pedro Antônio, Xândre e outros colegas. Rotineiros trabalhos em equipe, reuniões aos sábados, apresentações de seminários, e as feijoadas do sábado eram cada vez mais canceladas. Ela, contente pela perspectiva de proporcionar uma vida melhor à família; ele, se sentindo traído, e aqueles seios que não o libertava do sentimento de não mais serem apenas seus. Seu rosto se entristecia cada vez mais, a sua mente lhe torturava quase sem medida. Dominado por estes impulsos, ele passou a segui-la até a faculdade, a observar as suas saídas, a controlar o horário dos seus retornos, e ficava revoltado por não confirmar as suas conclusões tão convictas.

“Ou eu ou a faculdade”, foi a sua primeira manifestação verbal, justo no dia em que ela havia retornado pra casa com tantos elogios. Foi tudo de uma forma brusca e inesperada. Ela nada entendeu, e ele foi “tirando dos cachorros” e jogando nela. De repente, sentiu a juíza se quebrar em mil pedaços, suas promoções sendo canceladas, as agradáveis reuniões em equipe sendo suspensas, e nunca mais poderia ver Xândre, o mais divertido da turma. “Ou eu ou a faculdade”, ele repetiu, pausadamente, diante do seu silêncio perplexo. Ela até pensou que ele estivesse brincando, mas pensou também que ele estivesse ficando louco igual ao primo da mãe dele, louco depois de atormentado por criativas obsessões. Ele falava tudo o que havia guardado durante meses. As suas veias se excitavam na altura do pescoço, uma espuma grossa se avolumava pelos cantos da sua boca, e ele, alheio aos olhos apavorados dos filhos, desabafava todas as suas conclusões: que ela se insinuava para todos, que era oferecida, que estava lhe traindo, que seria corroída pela sua própria ambição, e outras coisas que ela ficou com vergonha de contar. Ela, estática, segurando firme a sacola com os novos livros que acabara de comprar.

A sua vida estava um inferno, ela disse. Não conseguiu nem chorar, tomada por um forte estado de choque. E ele a chamava de cínica, e dizia que aquele seu silencio era a própria confirmação de tudo. Ainda assim, ela permaneceu calada até que ele chorou desesperadamente um choro de criança. Sentou-se no chão, apoiou os seus braços no sofá, apoiou a cabeça sobre eles, e começou a soluçar. Ela pediu que as crianças fossem para o quarto, aproximou-se dele, tocou em sua cabeça, pensou nas várias histórias que ele havia contado da sua infância, beijou os seus cabelos e lhe disse baixinho que nada daquilo era verdade, que ele era o amor da sua vida, e deu-lhe uma grande noticia: no dia seguinte, trancaria o semestre na faculdade. Ele, então, ficou muito envergonhado pelo vexame que acreditava ter dado. Ela pegou em seus braços e ajudou a levantar aquele homem de corpo forte, robusto e tão mais frágil do que ela.

Na cama, ele pediu perdão por tudo. Dizia que ela era a mulher da sua vida, que não a deixaria por nada, que confiava nela, e que concluísse o seu curso na faculdade. Aproveitou e disse que havia sido aprovado na prova de matemática e que assim que passasse nas de química e física faria vestibular para engenharia. Empolgou-se dizendo que juntariam muito dinheiro e passariam uma lua de mel nas Ilhas Gregas, onde Xândre havia passado as suas últimas férias. Ele beijou muito o seu corpo naquela noite, ocultou a tormenta de ciúmes ao tocar em seus seios, e os tocava da maneira que ele imaginava que só ele sabia tocá-los.

No dia seguinte, ele estava novamente muito sério. Sem olhar em seus olhos, disse que realmente seria melhor interromper o seu curso na faculdade. Mas, para a sua surpresa, ela foi incisiva e não mais concordou em abrir mão de um futuro que lhe atraia. Ele voltou a insultá-la e, daí pra frente, a vida foi se tornando cada vez mais em altos e baixos. Num dia ele a amava, noutro dia dizia odiá-la; num dia, ela acreditava que ele estava enlouquecido; noutro dia, achava que era tudo por amá-la demais. Nestas variações, ela decidiu que realmente seria juíza, e que, apesar do seu amor, a porta estava aberta para ele escolher o seu próprio destino. Foi quando ele passou a se rastejar aos seus pés, alternando esta atitude com ameaças de divórcio e xingamentos sem fim.

Foram quase quatro anos nesta desavença. Fantasmas corroendo aquela alma, ela muito abatida, mas com propósito de não se desanimar com a vida. Perderam-se muito em meio às suas variações emocionais: malas diversas vezes arrumadas e desarrumadas, quartos separados por vários dias, e os seus retornos perdendo o sentido. Um não mais sabia quem era o outro, ou quem eram eles mesmos.

Exatamente hoje foi o dia da sua formatura. Ela sentiu a sua falta, e a última noticia sobre ele foi que, recentemente, havia sido aprovado na prova de física. Embora sentisse a perda daquele amor, nunca deixou de se encontrar com Xândre, o mais divertido da turma. E, para comemorar a formatura dos dois, foram jantar pato ao molho de vinho e ervas. Apenas os dois.

segunda-feira, 10 de agosto de 2015

Mas que jogo?


“Eu não estou entendendo nada do que você está falando.” Respondeu à insinuação sem saber exatamente em que direção manter o olhar. Mas estava entendendo sim. Surpreso. Muito surpreso. Mas estava entendendo sim. Dizia isto apenas para tentar disfarçar o seu impacto ao ouvir o que estava ouvindo. Não era possível não ter sido tão secreto o seu esconderijo! Assim pensava, quase sem tempo para descobrir onde havia falhado. “Não está entendendo?” E ela repetiu tudo novamente, em entrelinhas, da maneira mais clara e dolorida repetiu, sem qualquer intenção de perversidade, mas com o propósito de esclarecer que o jogo havia acabado. “Mas que jogo?” Ele perguntou, ainda sem acreditar. A sensação de uma forte, muito forte pancada em sua cabeça, e de tudo, absolutamente tudo ser levado em meio a uma correnteza forte, em um rio sem rumo. “Mas de que jogo você está falando?” Tentou um desafio. “Quer que eu diga palavra por palavra de que jogo eu estou falando?” Ela retrucou, cautelosamente, no mesmo compasso em que, sentada sobre aquela excêntrica poltrona alaranjada, ela passava a folha seguinte, daquela outra saga, a qual ela estava lendo. A cabeça se movia quase imperceptível, enquanto os olhos se alternavam entre o livro e os intensos olhares sobre ele, que permanecia quase imóvel diante dela.
Ele não respondeu se seria necessário que tudo fosse dito ou repetido palavra por palavra. Então, ouviu a mesma pergunta, de forma ainda mais compassada, dilacerante. “Vou a cozinha pegar água.” Foi a sua resposta. Atrapalhando-se sobre o tapete, saiu em direção à cozinha. As pernas trêmulas, visivelmente. Ela o acompanhou com o olhar e percebeu o seu nervosismo que, de certa maneira, lhe dava prazer. Intimidá-lo amenizava a sua dor. Parou o olhar sobre o nada e respirou uma dor em alguns cinco segundos.
Na cozinha, algo se espatifou no chão. Ela levantou o olhar, mas, não ouvindo qualquer outro ruído naquela direção, insinuou retomar a leitura.
Ele parado na cozinha, tenso. O copo aos pedaços espalhados pelo chão molhado. Olhou aqueles cacos com um olhar apavorado, e não enxergou nada, além dos seus próprios pensamentos atormentados: “E agora?”
Ela na sala. O olhar congelado sobre as letras embranquecidas. Decidida. Fim