terça-feira, 31 de dezembro de 2013

Degustando o perfume


Ela, ao adentrar o jardim vazio, imaginou o jarro da sala cheio de flores e nem se importou com a ausência do colorido que antes o enfeitava. Ao percorrê-lo, imaginou algumas coisas que tanto desejava, e a elas deu veracidades impressionantes: realidade e imaginação se confundiam e uma se via na outra como o próprio reflexo em seus espelhos. Quando a realidade agradável se ausentava, a sua imaginação criava outra que também a satisfizesse. Tornava-a tão feliz! E algumas vezes era uma felicidade evaporada no jardim, desaparecida no meio das suas flores, ou nas flores estampadas em algum canto do lençol ainda amassado sobre a cama. Uma felicidade frágil como bolas de sabão, nostálgico como um adeus dado no último vagão do trem, qualquer coisa assim. Para ela, principalmente em seus dias mais eufóricos, nada precisava ser para existir, se tudo era tão perceptível em sua contemplação indescritível. Assim, exatamente assim, ela atravessou o jardim e abriu a porta da casa.

O jarro estava repleto de flores colhidas no jardim. Repleto. Não apenas repleto de flores, mas elas harmoniosas, vivazes como se as suas pétalas houvessem se multiplicado e transformadas em outras, ocupando quase toda a sala. Não era imaginação, não era. Era uma realidade tamanha e não havia como negá-la, ainda que ela assustada com a inimaginável multiplicação das flores e com o restrito espaço para transitar na sala. As demais flores, aquelas que não estavam ou não estiveram no jarro, estava abundantemente espalhadas em vasos de cristal que enfeitavam os outros cômodos da casa. Os vasos impecáveis e deslumbrantes, mas que, naquele dia, foram ofuscados pelas flores em suas cores brandas, suaves, cores calmas. Algumas quase invisíveis quando no meio de flores tão vistosas no jardim. Quase. Não mais que isso.

Ela, deslumbrada depois de admirar a imensa sala até onde o seu olhar alcançava, encostou a porta, deixando-a entreaberta, deu alguns passos a frente, até ter uma imagem do quarto, o vaso, as flores, e sentiu uma emoção forte, muito forte, como há tempo não sentia. O perfume das flores não apenas adentrou o seu olfato de maneira demais agradável, mas também impregnou em sua pele, ela assim sentiu, e o perfume fazia reluzir a sala como se fosse luz. Àquele instante ela chamou Iluminado. Sem conseguir conter o deslumbramento, ela prostrou-se no chão, de joelho, mais uma felicidade inesperada, um vento inesperado, uma musicalidade vinda dos vasos de cristal...

Minutos depois, numa também inesperada sonolência, ela recostou-se na poltrona ao lado, sorriu com tanta delicadeza, olhou a porta entreaberta e nem se importou em fechá-la. Dormiu degustando aquele perfume. Degustando. Não apenas sentindo o seu cheiro lá no fundo da alma.

quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

Imprevisibilidade


O alívio chegou de repente
sem explicar origem e destino.
Sugeriu que não dá para prever
a hora
exata
de sua chegada

[e que ele chega,
mas
pode partir
num breve ou longínquo passar das horas]

[e que
depois da agonia
pode ser o contentamento quase sem fim]

O alívio chegou ao desligar o telefone
depois de palavras sem mais sentido

algum.

sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

Há Noites


Amanheceu com vontade de escrever um poema que anunciasse o quão aquela noite havia sido bela.
Bela e agradável a noite
ao som de uma mistura de gêneros musicais.
Para o seu contentamento, nada era clássico, nada era “brega”
nada era cult, nada era pop
nada era
jazz
soul
nada além de uma melodia
frases inteiras dentro da melodia,
bem ao longe,
e bem perto era uma sensação flutuante
e o desejo de compartilhar aquele instante no poema tão bonito e que começasse assim:
há noites que são radiantes,
um alento,
uma nuvem leve se aconchegando em nossos braços,
e os nossos corpos bailando,
bailando,
bailando...
Há noites.