terça-feira, 31 de dezembro de 2013

Degustando o perfume


Ela, ao adentrar o jardim vazio, imaginou o jarro da sala cheio de flores e nem se importou com a ausência do colorido que antes o enfeitava. Ao percorrê-lo, imaginou algumas coisas que tanto desejava, e a elas deu veracidades impressionantes: realidade e imaginação se confundiam e uma se via na outra como o próprio reflexo em seus espelhos. Quando a realidade agradável se ausentava, a sua imaginação criava outra que também a satisfizesse. Tornava-a tão feliz! E algumas vezes era uma felicidade evaporada no jardim, desaparecida no meio das suas flores, ou nas flores estampadas em algum canto do lençol ainda amassado sobre a cama. Uma felicidade frágil como bolas de sabão, nostálgico como um adeus dado no último vagão do trem, qualquer coisa assim. Para ela, principalmente em seus dias mais eufóricos, nada precisava ser para existir, se tudo era tão perceptível em sua contemplação indescritível. Assim, exatamente assim, ela atravessou o jardim e abriu a porta da casa.

O jarro estava repleto de flores colhidas no jardim. Repleto. Não apenas repleto de flores, mas elas harmoniosas, vivazes como se as suas pétalas houvessem se multiplicado e transformadas em outras, ocupando quase toda a sala. Não era imaginação, não era. Era uma realidade tamanha e não havia como negá-la, ainda que ela assustada com a inimaginável multiplicação das flores e com o restrito espaço para transitar na sala. As demais flores, aquelas que não estavam ou não estiveram no jarro, estava abundantemente espalhadas em vasos de cristal que enfeitavam os outros cômodos da casa. Os vasos impecáveis e deslumbrantes, mas que, naquele dia, foram ofuscados pelas flores em suas cores brandas, suaves, cores calmas. Algumas quase invisíveis quando no meio de flores tão vistosas no jardim. Quase. Não mais que isso.

Ela, deslumbrada depois de admirar a imensa sala até onde o seu olhar alcançava, encostou a porta, deixando-a entreaberta, deu alguns passos a frente, até ter uma imagem do quarto, o vaso, as flores, e sentiu uma emoção forte, muito forte, como há tempo não sentia. O perfume das flores não apenas adentrou o seu olfato de maneira demais agradável, mas também impregnou em sua pele, ela assim sentiu, e o perfume fazia reluzir a sala como se fosse luz. Àquele instante ela chamou Iluminado. Sem conseguir conter o deslumbramento, ela prostrou-se no chão, de joelho, mais uma felicidade inesperada, um vento inesperado, uma musicalidade vinda dos vasos de cristal...

Minutos depois, numa também inesperada sonolência, ela recostou-se na poltrona ao lado, sorriu com tanta delicadeza, olhou a porta entreaberta e nem se importou em fechá-la. Dormiu degustando aquele perfume. Degustando. Não apenas sentindo o seu cheiro lá no fundo da alma.

quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

Imprevisibilidade


O alívio chegou de repente
sem explicar origem e destino.
Sugeriu que não dá para prever
a hora
exata
de sua chegada

[e que ele chega,
mas
pode partir
num breve ou longínquo passar das horas]

[e que
depois da agonia
pode ser o contentamento quase sem fim]

O alívio chegou ao desligar o telefone
depois de palavras sem mais sentido

algum.

sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

Há Noites


Amanheceu com vontade de escrever um poema que anunciasse o quão aquela noite havia sido bela.
Bela e agradável a noite
ao som de uma mistura de gêneros musicais.
Para o seu contentamento, nada era clássico, nada era “brega”
nada era cult, nada era pop
nada era
jazz
soul
nada além de uma melodia
frases inteiras dentro da melodia,
bem ao longe,
e bem perto era uma sensação flutuante
e o desejo de compartilhar aquele instante no poema tão bonito e que começasse assim:
há noites que são radiantes,
um alento,
uma nuvem leve se aconchegando em nossos braços,
e os nossos corpos bailando,
bailando,
bailando...
Há noites.

sábado, 30 de novembro de 2013

Desempoeirando


Depois de tanto tempo de coisas acumuladas dentro dela e dos objetos, e sobre eles e detrás deles, ela acordou impulsionada por um surto. Na ausência imediata de algum outro termo, ela chamou aquele instante de Surto. Mas não era. E só ao fim da manhã foi que ela começou a encontrar outros termos que definiram tão bem aquela reação apenas aparentemente súbita.

Havia acordado de uma noite tensa, densa, imensa noite que não acabaria nunca se não fosse o cansaço em seu corpo e em seus pensamentos acelerados um sobre outro, um jogo de empurra-empurra numa busca desenfreada de encontrar os seus lugares, soltos e transfigurados. Foi nesse tumulto que, poucas horas depois, acordou sentindo que algo balançava o seu corpo. Um grito desenfreado e sereno anunciava que era preciso sair daquele lugar, ou nele permanecer, mas que era necessário abrir as janelas, mudar as cortinas, tirar toda poeira que pesava os móveis, apesar de estarem sempre limpos, tão limpos.

Todos os dias presenciava-se aquela limpeza sem igual, mas tudo pesava diante dela, nela, sobre ela, até que, naquele dia, acordou com aquele grito sereno. Assustada, respirou com um alívio qualquer e voltou a fechar os olhos, com um desejo de dormir até que outras horas se passassem. Muitas e muitas horas. Entretanto, sentiu que lhe puxavam o lençol, o cobertor, o travesseiro, e ela quase sem força para reagir. Ela sem vontade alguma, até que outro grito surgiu, mais brando, um grito que lhe foi inconfundivelmente sereno e que lhe murmurou palavras após palavras.

Elas, as palavras, formavam períodos inteiros e reagia sobre ela como qualquer coisa que ela não sabia como explicar que coisa qualquer era aquela, ela tão sem palavras. E o outro grito se foi, quando ela ainda deitada, até que sentou sobre a cama, passou as mãos sobre o rosto, sobre os cabelos, levantou, banhou-se demoradamente sob o chuveiro de água forte, olhou-se no espelho, decidida a reverter aquela aparência cansada, e começou a desempoeirar não mais os móveis sobre a casa.

Passou o restante do dia assim, desempoeirando não os móveis da casa, desempoeirando-se.

Ao final da tarde, sentiu qualquer coisa estranha lhe arranhando, até que ela se apegou novamente aos gritos serenos e às palavras brandas murmuradas ao seu ouvido, e guardadas consigo. Lembrou-se do cansaço que ela já não queria sentir, e prosseguiu, desempoeirando. Ela desconfiava de que algo havia transcendido de vez.

Minutos depois, abriu a porta da casa e saiu, levando consigo o grito sereno.

quinta-feira, 28 de novembro de 2013

Empoeirando o Tempo


Ela passou o tempo arrastando os móveis da casa, os móveis arrastados sem nunca terem saído do lugar. Alguns, de um tempo mais recente, mas tão pesados quanto os outros de antes, bem de antes: aqueles móveis de quando as horas de recordações afetivas não eram imprecisas. Nada parecia impreciso, antes. E de repente os quadros nas paredes envelheceram e as suas molduras perderam o seu dourado, empoeirados juntamente com as fotografias que coloriam o tempo. Ela sem querer compreender que nada daquilo que ela sentia podia ser amalgamado em móveis e em coisas de maneira a eternizar o que jamais viria a ser, senão dentro da casa que é ela mesma. Não eram os móveis, nem eram as coisas, e, paradoxalmente, eram eles ocupando os mesmos espaços do que pulsa dentro dela. Ela, acumulando coisas detrás dos bibelôs pretendidos a enfeitar o móvel de portas espelhadas; e coisas tumultuadas dentro do jarro de porcelana sem brilho algum num canto da sala, e debaixo da toalha de linho cobrindo o centro da mesa. Ela, acumulava tudo aquilo dentro dela, empoeirando o tempo.

domingo, 17 de novembro de 2013

Lucidez remexida


Cambaleava na avenida. A loucura cambaleava entranhada numa lucidez que não parecia ser qualquer uma. De quem era a loucura se ela garantia não ser dela? Ela convicta, enquanto uma espuma se acumulava nos cantos de sua boca, efervescente acidez provocada pelo desespero angustiante de se afirmar lúcida; ela, desafiando qualquer ausência de loucura estampada nos transeuntes, todos eles perplexos diante de frases tão bem formuladas da louca, “a louca está atacada no ônibus”, murmuravam alguns deles, enquanto ela, apavorada pela certeza de estar rodeada de olhares insanos, movimentava os braços, brusca e veementemente, segura de si mesma, e das veias alteradas subia aos seus olhos um vermelho enfumaçando palavras.

“Abre o caminho, abre.” Ela determinou, enfática e cambaleando ainda mais pelos bruscos movimentos do ônibus. E, com um tom de voz oscilando entre estridente e brando, prosseguiu, com um olhar firme sobre os passageiros ao seu redor:

- Abre o caminho que preciso passar e gritar até eu ver saindo de dentro da minha alma a dor que eu sinto por ser tratada como louca durante tanto tempo. Me chamaram tanto de louca! Me chamaram e ainda me chamam tanto de louca que comecei a ficar zonzinha de tão perdida, sem mais saber quem eu era. Vocês sabem que eu cheguei a ficar com medo de não saber mais quem eu sou? Mas ai eu repito o meu nome o dia inteirinho para eu não esquecer. Eu ficava zonzinha-zonzinha e lutando dentro de mim pra eu não esquecer que eu não era louca coisa nenhuma. Louca? Eu nunca fui louca, nunquinha, mas tanto me chamaram assim que eu me afundei num tonel de cachaça, e fui me afundando ainda mais do que naquele tempo que eu comecei a beber. Eu novinha! E eu bebia e eu dizia que eu não era louca, e eu bebia e até hoje bebo, bebo até a minha garganta ficar amarga que nem fel. É do fel que arranco as minhas palavras agora. Do fel. Ô que coisa ruim! Coisa ruim é arrancar palavras do fel! E não é só palavra não.

Ela elevou as mãos até a cabeça, respirou uma angústia, passou as mãos sobre os seus cabelos crespos e desalinhados, limpou a espuma de um dos cantos da boca, respirou outra angústia e prossegui o seu discurso, louco para alguns e sensível para outros.

- Eu fiquei quase surdinha...

Respirou outra angústia.

- Quase surdinha...

E esfregou uma mão sobre o rosto suado, as veias alteradas pulsando uma ira, um descaso, uma dor remexida e se arrastando pelo tempo, arranhada. Novamente pegou o fio, enquanto novos passageiros avolumavam o ônibus e outros eram obrigados a se aproximarem dela.

- Vocês estão com medo de chegar perto de mim, é? Estão com medo? Me humilha! Me humilha também igual a eles. Olha, eu já fui tão humilhada que muitas vezes já me senti uma migalha. Uma migalha. Uma coisinha desse tamanho assim, ó. Ó, ó, ó.

Ela persistia em seu gesto com os dedos, representando a pequinês que já havia se sentido, insistindo para que a vissem, e o silêncio de todos, alguns se insinuando desatentos, mas quase todos atraídos pela intensidade daquela que, pouco a pouco, não era mais a louca lá do começo.

- E a migalha ficou quase surdinha, quase surdinha de tudo, de tanto ouvir que não prestava pra nada. Eu ouvia tanto isso!
E que o meu destino é ficar zanzando num mundo rodeada de gente doida que nem eu. Que nem eu não, eles é que dizem que eu sou assim. E vou dizer, viu! Vou dizer que o que me dói ainda mais... O que me deixa desesperada ainda mais é que eles acham que eu sou louca mesmo e me enchem de remédio. Como é que eles me enchem de remédio? Eu digo, mas ô gente, ô gente, não diga que eu sou louca, que é coisa de louca...

Uma nova camada de espuma expelia de sua boca, o gosto daquele fel, as suas pernas agora trêmulas e os seus olhos brilhando de lágrimas. E ela, talvez sem nem perceber que lágrimas desciam em seu rosto, contou:

- Se eu estou com dor de cabeça, o remédio que eles me dão é um punhado de comprimido para gente louca, e, se eu não tomo, eles me dão de alguma maneira. Eu não tenho como ficar sem comer nada e nem beber nada naquela casa, porque querendo ou não aquele é o meu lugar. Eles dizem que o meu lugar é num hospício, mas eu lá não chegarei! Eles pensam que eu não sei que de algum jeito aqueles comprimidos descem minha goela adentro, mas eu sei, sei e muito bem, pois, depois, eu caio num sono de não sei quantos dias e quando eu acordo já não sei quem eu sou, até que eles me dizem: “você é louca”.

Ela repetiu “você é louca” já tão alterada e apontando o dedo aleatoriamente para as pessoas ao seu redor, “você é louca” e novamente o dedo sobre elas, “você é louca” e levou as mãos sobre a cabeça, se encaminhou até a escada da porta de saída do ônibus, recostou numa de suas laterais, e murmurou qualquer coisa; e murmurou outra vez qualquer outra coisa. Então, suarenta e acometida por uma sonolência repentina, balbuciou não tão baixinho: “às vezes, a gente não tem outra saída a não ser louca mesmo!”, e começou a resistir ao sono, muito sono, ela cambaleando entre as pernas dos passageiros silenciosos.

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

As quatro estações em tão poucos minutos


Olhou o tempo como se fosse uma árvore de folhagem verde,
bem verde a folhagem
e pouco a pouco era uma árvore de inverno
(num lugar onde as estações se definem tão bem).
A árvore. A mesma árvore
percorrendo a primavera e o outono
espremida dentro daquele momento
Breve.

Olhou o tempo como se fosse uma estrada
bem longa a estrada
(e lá no fim ainda se vê a nítida imagem do céu bem próximo da terra
distância inenarrável).

Olhou o tempo e o enfeitou com imagens palpáveis
coisas e cores, o abstrato e o concreto se confundindo.
As sementes germinavam,
Germinavam,
E o tempo se movimentava em folhas, em flores, em frutos.

Depois olhou as horas:
tão poucos minutos
dentro daquele tempo.

terça-feira, 15 de outubro de 2013

O que se pergunta ao pó?


Depois de olhar atentamente as prateleiras da velha livraria, encontrou, ao acaso, sem que estivesse procurando-o naquele dia, um único volume do romance que há muito tempo desejava ler. O título o instigava. Com esta sensação, sentou em sua cama, tendo consigo o livro ainda dentro da sacola de plástico que o embalava, e, ali, com os pés sobre a cama, desembrulhou-o. Primeiro leu a contracapa, depois o prefácio, folheou-o lentamente, abriu em qualquer página e leu um parágrafo inteiro.

Ao fim daquela breve leitura, permaneceu com o livro aberto em seu colo: o olhar distante, bem longe, o olhar penetrando na imagem que se entrelaçava com a alma. Estava certo de que amaria aquela leitura. Agora mais seguramente que antes. Entretanto, logo em seguida, recuou um pouco e abriu uma margem para possíveis frustrações em algum momento ou outro. Protegia a si mesmo de qualquer desvio ao qual uma expectativa está sujeita.

O título. O título o instigava. Instigava-o principalmente por induzi-lo a perguntar ao pó, fazer perguntas ao pó, “como pode alguém fazer, qualquer que seja, uma pergunta ao pó?” Perguntou a si mesmo. O pó. O pó no vento, no tempo, na alma, no peito abarrotado de tantas coisas se acumulando no decorrer das horas de cada dia. Tanto tempo e tanto pó, tanto pó no vento, no tempo, na alma, no peito às vezes vazio, bem vazio de tantas coisas. O peito, o cansaço do ser e a alma, a alma liberta do pó: pergunte, pergunte ao pó, o pó no vento lá dentro de cada um, lá dentro o pó, e a poeira espalhada, lá fora e lá dentro. Ao pó, pergunte ao pó, a própria voz de cada um!

Depois de tantas sensações avolumadas sobre outras, virou a página do livro e, por fim, deu início ao primeiro capítulo. Ele curioso em saber o que se pergunta ao pó.

- O que se pergunta ao pó?

terça-feira, 17 de setembro de 2013

Lava, lavra a palavra

Depois que a madrugada acabou, fiquei pensando em suas palavras, lavra, lavra, lavrar as palavras, mas nem sempre é o instante de lavrar, lavar as palavras espremidas, abarrotadas as palavras, arrotadas, lavar, lavar como se fosse o rosto suado, o rosto colado ao sol, molhado de suor de uma tarde inteira no caminho, longo, bem longa a caminhada enquanto as palavras espalhadas ao solo, sem vento, o tempo sem vento, palavras transpirando, lavadas, a lavra, lavra, lavar as palavras até serem elas, aquelas e não outras as palavras, lava.

quinta-feira, 29 de agosto de 2013

É vento, é pó, é tempo


A cor do tempo verde ao vento
Branco e cinza as cores do vento, e azul, assim é o tempo
Baila no vento brando o tempo e outras vezes no vendaval
No vento brando o sereno tempo imprevisível cor
Colorido ou não o vendaval é tempo sempre
É o tempo. O tempo é vento e na poeira o pó do tempo
Todos os dias o tempo e o pó
Todos os dias é vento, é pó, é tempo.

terça-feira, 27 de agosto de 2013

Paredes de vidro


E porque as vestes não eram,
a nudez novamente
diante de uma avidez das horas interiores.
As horas alheias ao tempo lá fora
Lá fora
Do outro lado das paredes de vidro: mundos desconhecidos.
Lá fora.
E dentro,
o desejável revelando-se impossível.
Tudo antes impensável, e depois
Tantas coisas preenchendo lacunas do que antes nunca seria.
As lacunas do que antes era nada além do apenas novamente
Nada além de um instante.
E, depois,
Tempos depois,
um sabor estranho demais.

domingo, 4 de agosto de 2013

As flores são sempre iguais, mas nunca as mesmas, nas casas nunca iguais


Não é esta a estação. É a próxima. Mais alguns poucos minutos e o trem chegará. Uns cinquenta e cinco minutos, aproximadamente uma hora. É sempre isso, nunca mais que isso. Mas já lhe antecipo uma coisa: ao chegar lá, não se assuste com a estação, pois ela não é bela como esta. Houve um tempo que sim! Depois, tudo mudou, mas não apenas por causa do próprio tempo. As paredes já não são as mesmas, as cores estão cada vez mais envelhecidas, e nunca se importaram em restaurá-la. Entretanto, para alguns, mesmo assim ela continua sendo mais bela que esta; para outros, e para a grande maioria, não! Para estes, os velhos tempos levaram toda a beleza que nela havia. “Era a estação mais bela, incomparável.” Sempre dizem isto quando relembram aquele tempo e o tempo de hoje. Todavia, uma coisa eu posso lhe garantir: você se surpreenderá ao atravessar o portão daquela estação. Quem nunca esteve ali antes se surpreende, e mesmo aquele que já esteve se surpreende novamente. Aquela estação é tão paradoxal com aquilo que há depois do portão! Aquilo que surge depois daquele imenso salão... A travessia sobre aquele piso ainda tão bonito, ainda que meio estragado. Ao se deparar com a rua, você verá um dos lugares mais belos e instigantes. Uma beleza “radiante e inexplicável”. É assim que todos definem aquela cidade. O pomar! Surpreendentemente, há um pomar logo após a estação: uma água tão limpa, a claridade imensa, nada, nada ao redor. Depois do pomar, surgem as casas, as ruas, as avenidas, tantas casas enfileiradas como se fossem casas de brinquedo. O brinquedo projetado na vida. Entende? Entende como é casa de brinquedo mas que parece ser real e casa real que parece ser de brinquedo? Não sei. É uma cidade onde todos os dias o trem atravessa, e, embora alguém sempre parta, também alguém sempre fica. Ainda assim, há dias em que não se vê ninguém, e outros dias em que todas as pessoas parecem sair ao mesmo tempo, um tempo breve, muito breve. Numa ocasião ou noutra, há algo em comum: a sensação de encantamento, o que comprova que o gozo não surge apenas por uma via. Há muito mistério naquela cidade. O predomínio das cores é algo que resplandece. O amarelo e o azul. Quase tudo amarelo. E o verde. Em cada casa há um jardim. Em todas. Se não à frente, visível e sedutor aos transeuntes, ele estará ao fundo. Há sempre um jardim, não importa onde, e as flores são sempre iguais. As flores são sempre iguais mas nunca as mesmas nas casas nunca iguais.

quinta-feira, 1 de agosto de 2013

E quando depois


E quando depois, horas depois, disse a verdade, já não havia tanto tempo para reconstruir o desejo já transfigurado, a vontade, o prazer, mesmo nos momentos mais simples como naquele dia em que a paisagem lá fora era transeuntes pra lá e pra cá e imaginávamos seus monólogos refletindo a respeito da própria vida e suas esperanças, mesmo que tão fantasiosas; e, outras vezes, de lá do alto da janela imaginávamos os diálogos tão confortáveis, outros sem conforto nenhum; e novamente a vida espalhada sobre as expectativas imprevisíveis, tudo, tudo tão imprevisível e dizíamos quase em uníssono: “chega um momento que só se deixa enganar quem quer, quem tem medo de encarar a dor, quem tem medo de dizer: “chega!”. Lembra-se? E, naquele dia, naquele dia em que de repente a chuva caiu inesperadamente na sacada da janela e o frio surgiu sem antecipar que a noite seria tão fria, fechamos a janela, a porta do quarto, apagamos a luz, e, mesmo às 3 horas da manhã e mais alguns poucos minutos, ainda confabulamos a respeito da escuridão, a noite tão escura, e a certeza de que o amanhã seria exatamente como teria que ser: tudo imprevisível. Assim, salientamos que ele, o imprevisível, pode ser o lugar exato do começo, do início, do fim. Depois de uma breve pausa, ainda concordamos com a possibilidade da ordem contrária das coisas: o fim, o início, o começo.

segunda-feira, 22 de julho de 2013

O quarto


Imprimiu no pensamento um quadro de Van Gogh
O quarto silencioso
A cama vazia
As cadeiras vazias
A porta fechada
Os quadros inclinados sobre a cama e sobre o piso tão gasto
A janela entreaberta
E o espelho a refletir paisagem sem movimento.

Tudo em silêncio, mas um silêncio em cores.
Tudo vazio, mas um vazio que não é o nada.
Algum paradoxo?

Por vezes, tudo parece expectativa
diante da janela apenas encostada.

domingo, 21 de julho de 2013

Apenas


Foi até a estante
Cheia de livros nunca lidos
Alguns apenas folheados
E livros lidos e relidos.
Tantas frases grifadas, anotações rabiscadas
Marcando instantes consagrados pelo tempo.

Queria ler um clássico!
Não.
Queria ler um contemporâneo!
Não.

Olhou o instante
Viu tantos títulos
E não se interessou por nenhum
Não naquele momento.

Pegou um papel
Um lápis
Uma caneta
Repousou a caneta
E com um grafite começou a transcrever uma poesia.
Erudita!
Não.
Contemporânea!
Não.

Queria mesmo era eternizar aquela sensação inexplicável.
Apenas isso.

sexta-feira, 19 de julho de 2013

O vinho tão bem encorpado


Não importa a cidade:
ela acorda no meio da noite
Não importa a casa
O quarto
A cama
O lençol
O cobertor:
ela acorda no meio da noite.
Todos os dias ela acorda no meio da noite
e redesenha na memória os sonhos
os delírios...
os sonhos ou os delírios [ela nunca sabe ao certo]
e depois se movimenta sobre a cama
sem se importar em qual cidade
em qual casa
em qual quarto.
E na fronha amassada
o hálito do vinho tinto tão bem encorpado.

quinta-feira, 18 de julho de 2013

Tempo fotografado



“São 4 horas da madrugada”
Afirmou,
Sem vontade de abrir os olhos
Abrir a janela
E perceber que eram 4h da tarde.

“São 4 horas da madrugada”
Persistiu,
Sem vontade de abrir a janela
Sem vontade de abrir a porta
Sem vontade de andar pelo corredor
Ir até a sala
Abrir a janela.

Todas as janelas fechadas.
Era novamente 4 horas da madrugada.

terça-feira, 25 de junho de 2013

Uma ideia para um texto



Hoje, enquanto tomava café da manhã, olhava o dia lá fora e veio a mim a ideia de escrever um texto que comece assim: “Eram duas mulheres. Uma se chamava Maria e a outra Maria também. Uma era das Graças e a outra das Dores”.

(De repente - mas de repente mesmo -, a minha memória deu um zoom no tempo, e trouxe dados ainda desordenados, deixando comigo a suposição de que esta ideia não tem nada de novo. Uma sensação de que alguém, bem conhecido, já escreveu um texto exatamente assim. Duas Marias iguais, e diferentes. Uma era assim e a outra de outro jeito.)

(Entretanto, na possibilidade de estar sendo repetitivo, pensei noutra coisa. Uma coisa comum, bem comum, mas fiquei ali pensando: tudo parece já ter sido dito. Os clássicos são repetidos neste tempo pós-moderno, ou contemporâneo. Pós-Moderno é tão pós, ainda que deixa polêmicas no ar conceitual: o tempo pós-moderno, a pós-modernidade cultural, o modernismo tardio, o pós-modernismo estético e outros pós.)

(Retornando: os clássicos se repetem e são espalhados nesta contemporaneidade onde tudo (entre aspas, talvez) se intercala e se faz novo, sem que, contudo, cada texto se desloque ou seja deslocado de seu caráter, único, transponível tantas vezes em referências tão sutis, mas que exige sabedoria tanto do autor quanto do seu leitor.)

Sinceramente, ainda não parei para pensar na existência de Maria das dores e Maria das graças num mesmo texto, e nem onde vi, se realmente vi, e quem escreveu. Mas, se de fato elas assim existem – acredito que sim -, não sei se a das graças era a que sofria as dores e a das graças era a que recebia mais misericórdias.

Na verdade, ao pensar nas duas Marias, eu pensei mesmo foi neste antagonismo que até rima com pós-modernismo. Uma rimazinha fraquinha, ismo com ismo, mas, haja Maria para discutir estes dois termos! Agora, ao dizer Maria, digo também João. Mas, voltando ao começo do texto:

“Hoje, enquanto tomava café da manhã, olhava o dia lá fora, e veio a mim a ideia de escrever um texto que começaria assim:”.

quinta-feira, 30 de maio de 2013

A linha tênue



A sensibilidade do instante
Um vácuo
Uma linha tênue
Madrugada
A linha tênue
O vácuo
Nada

A linha tênue
O vácuo
O jato
A nuvem
Tudo um vácuo
(Nada mais)
Tudo.

O fio
A linha tênue
O vácuo
A luz.

segunda-feira, 27 de maio de 2013

O Silêncio e o Tempo



Desde ontem, ela está com vontade de chorar, mas não tem conseguido. Ao final da tarde, quando tudo parecia prestes a romper em seu interior, vislumbrou qualquer coisa semelhante a uma faísca de luz, mas não era nada além de efêmeros efeitos fumegantes.

Ela, tomada pelo efeito de uma epifania deslizante, viu a tarde passar e entregar à noite o poder de dominar o tempo, para que ela, a noite com a sua enigmática cor, concluísse o dia. Entretanto, as horas - invisíveis e intocáveis - prolongaram-se perceptíveis e devoradoras como se possuíssem garras: as horas bem mais prolongadas que as de todas as noites anteriores.

A noite, tantas vezes antes piedosa ao sustentar um vaso de bálsamo, tornara arrogante e sem misericórdias. Assim, arrogante, prolongava o tempo com as suas mãos sobre os ponteiros do relógio, parados durante segundos e minutos transfigurados em horas que se distanciavam do amanhecer: aquele lugar onde estava depositada qualquer que fosse a esperança.

“Estou com vontade de chorar, desde ontem”. Ela repetiu, ao amanhecer do dia, e repetiu ao início da tarde, ainda sem saber a razão, ainda sem saber o que se passava dentro dela mesma. Mas, ao final da tarde, quando o círculo do dia estava prestes a recomeçar, ela desconfiou de que, talvez, fosse por causa das fotografias remexidas, as cartas relidas, as imagens e as palavras que se aliaram umas às outras e se transformaram numa sensação sem nome, sem rosto, sem forma, sem voz.

Tudo se fez silêncio. E ela agarrou-se a ele numa sintonia íntima. Ele, o silêncio, acolhedor, com o seu sopro sensível e quase imperceptível a conduziu naquela travessia, até o instante em que ela percebeu que o tempo se faz novo.

quinta-feira, 9 de maio de 2013

(Não) Foi




Não foi a chuva
Não foi a relva
Não foi a ferrugem
Não foi o vendaval.


Não foi a correnteza
Não foi o lodo
Não foi o vento.

Não foi isso
Não foi aquilo
Não foi nada.

Foi o tempo.

terça-feira, 30 de abril de 2013

Espelhos



Com a bagagem em suas mãos, ele fechou a porta da casa e foi em direção ao carro, decidido a não olhar para trás. Não queria desistir de ir embora e nunca mais retornar.

Ao abrir o bagageiro, deparou-se com a antiga mala herdada da mãe: a bagagem preparada na semana anterior, quando ele partiria sem olhar para trás, para não se ver abandonando a casa vazia. Entretanto, olhou pelo retrovisor e viu aquela imagem que lá ficaria. Não resistiu.

Na semana seguinte, ele desistiu de bagagem. E na estrada lamentou o jardim de cores que se perdem com o tempo.

terça-feira, 23 de abril de 2013

Fio de palavras



Um fio de palavras tecia o tempo
As palavras enfileiradas no fio
voavam
tênue e forte: o fio
tecendo o tempo como se fosse algodão.

O fio de palavras voava
voavam: as palavras
Às vezes eram nuvens e noutras algodão.

sábado, 13 de abril de 2013

O cheiro de alecrim: como se fosse pássaro



Ela não disse nada. Com o jarro em suas mãos, ela permaneceu diante da mesa coberta por uma imensa toalha amarela, um amarelo bem claro, quase tão empalidecido quanto o seu rosto naquele instante de inesperado recuo no tempo. A longa toalha sobre a mesa e nada mais, aparentemente nada mais.

Os pratos brancos e os talheres ocupavam os devidos lugares ao redor da mesa: o cheiro de alecrim exalava do lombo farto e dourado, assado e rodeado por largas rodelas de batata igualmente douradas e frutas caramelizadas. Era aquele o prato que ocupava o centro da mesa, numa longa travessa de vidro transparente, independente de dia de comemoração, dia qualquer, mas quase sempre num domingo. Uma fatia, duas fatias, todas as fatias do lombo suculento e recheado com qualquer detalhe que o diferenciasse do anterior.

Ela permaneceu sem dizer nada. O lombo cuidadosamente servido, um a um de todos ao redor da mesa, e todos degustavam com um prazer nítido: o sabor crocante deslizava sobre o paladar e o movimento dos talheres se tornara inesquecível com o seu som melódico. Ela não disse nada. Pouco a pouco, a mesa começou a se esvaziar, a melodia a se distanciar, e ela, então, pousou o jarro sobre a mesa, no centro, bem no centro, enquanto, densamente, sentia o cheiro de alecrim que havia pousado na sala, como se fosse pássaro.

terça-feira, 9 de abril de 2013

Até que avistou outro jardim



Percorreu a estrada inteira repetindo a canção que ouvira minutos antes
quando as palavras surgiram demasiadamente cortantes.

Lançou as palavras sobre o jardim
espalhou-as na praça
sobre as flores murchas e coloridas
Um colorido amarelado que
para alguns, enfeitavam o jardim
para outros, nem jardim existia naquele lugar.

Percorreu a estrada inteira repetindo aquela canção

Na boca, o gosto das palavras cortantes
embora estivessem lá no jardim, escorregando sobre as flores
Na língua, o gosto travado de nódoa
embora já estivesse lá no fim da estrada.

Percorreu a estrada inteira repetindo aquela canção
até que avistou outro jardim.

quinta-feira, 28 de março de 2013

A névoa e o trigal



Ao dobrarem a esquina já não eram as mesmas pessoas, já não eram as mesmas vestes, já não eram os mesmos ornamentos. Nada mais era a mesma coisa, e, por mais que as vestes fossem outras, as pessoas que surgiam ao dobrar de cada esquina eram a mesma. Uma única pessoa, apesar das feições diferentes. Por dentro, o ser igual, idêntico como máscaras pintadas ou esculpidas em séries múltiplas. Todas as pessoas eram a mesma pessoa, embora as mesmas sensações fossem expressas de maneiras diferentes.

Ao dobrarem a esquina, as identidades unificavam-se. Era algo mais ou menos assim. Todas as multifacetações resultavam numa espécie de homogeneidade criada por moléculas de número infinito, e já não havia diferença alguma.

Na última esquina do quarteirão, a perplexidade foi inevitável. A sólida avenida entre um quarteirão e outro havia desaparecido, e, do outro lado, o que havia era um trigal tão grande que o olhar não conseguia enxergar o seu fim. A distância entre um quarteirão e outro permanecia a mesma, mas a avenida já não era um solo firme e resistente. Uma parte havia se transformado numa areia movediça e outra parte num lamaçal escorregadio e profundo. De um lado, o trigal resplandecente; e, do outro, o olhar paradoxal: assustado e admirado, apavorado e contemplativo.

Lá no fim da avenida, num lugar que se tornou muito distante, havia, entre um lado e outro, uma pedra grande e outras pequenas pedras afastadas uma da outra em uma distância de passos largos. Algumas pedras eram movediças; e outras firmes. Para lá, apenas um encaminhou-se, portando o seu longo casaco e os seus anéis de ouro e prata, abandonados no meio do caminho distante e coberto pela névoa acobreada que surgia atrás dos seus passos, ele atraído pela euforia de cada dia.

Precisava alcançar as pedras, fazer a travessia, descobrir as pedras movediças e delas se desviar, alcançar o trigal, colher o trigo, preparar o pão, se ainda lhe fosse permitido. Precisava que aquela imensa pedra fosse confiável e não se movesse ao fundo, precisava, e contava com pouco tempo, muito pouco tempo.

E eis que, de repente, surpreendeu-se imensamente com o que acabara de ver. Imensamente.

sábado, 23 de março de 2013

Palavras no papel em branco



Tão simples o papel em branco sem nada
Exposto sobre a mesa ampla sem nada mais
Nada mais além do papel em branco à espera de quaisquer palavras
que caibam perfeitas na melodia que ecoa na sala cheia de móveis brancos e as flores amarelas enfeitando os dois jarros de cristal.

A canção intensa sem palavras escritas, lidas
As palavras imaginadas enquanto a canção promove intraduzíveis imagens de tão grandioso instante.

O papel em branco cheio de palavras invisíveis
Palavras e palavras invisíveis e tão marcantes como se fossem impressas em tábuas e pedras, em rochas e troncos
des
li
zan
do
As palavras deslizando entre o doce silêncio da alma e a cumplicidade do papel em branco e silencioso,
guardando a eternidade de um instante enfeitado de flores reluzindo em seus cristais.

sábado, 9 de março de 2013

A Névoa Imponente III



Todos permaneceram com o olhar diante da imensa cortina, confeccionada com milhares e milhares de metros de tecidos. Ao fundo, um tecido mais pesado, cor de trigo seco no campo, e na frente um tecido leve, ornamentado com todos os candelabros, transportados do imenso tapete metamorfoseado. A cortina de tecido fino flutuava, sobrevoando ao menor sinal do vento. Esses instantes revelavam ainda mais os candelabros, todos idênticos, balançando em cada sopro do vento, por mais leve que fosse. Os candelabros flutuavam até o alto, e retornavam no acalmar do vento.

Toda a multidão havia novamente silenciado pelo impacto do acontecimento jamais presenciado. Cada um se sustentava em suas próprias conclusões: algumas semelhantes, outras adversas, alguns sem qualquer habilidade para dar significado, e outros extremamente atormentados ou extasiados.

Em poucos segundos, um a um retomou a indagação inicial: o outro lado, o detrás, o que estaria do outro lado. O que? O que será que existe do outro lado? A montanha? O rio? Ainda haveria a montanha? E o rio, ainda existiria? Poucos, bem poucos, acreditavam que sim, mas a cor do tempo parecia insinuar que não. A grande expectativa agora era a de que a cortina se abrisse diante de todos, embora nem todos quisessem ver. Receio, muito receio, enquanto outros se revelavam em entusiasmo, ávidos.

De repente, um som de murmúrios encheu todo o lugar. Cada um ouvia apenas o próprio balbuciar, que, ao se reunirem, causou um efeito sonoro de trovão abafado a milhões, bilhões, trilhões de quilômetros de distância. Naquele momento, uma nova névoa surgiu do nada, do nada, absolutamente nada que sinalizasse algum surgimento das coisas, e cobriu toda a cortina. Lentamente, diante do olhar extasiado de muitos e do olhar assustado de outros, a névoa novamente desapareceu. E assim, já não havia cortina. Absolutamente. Não havia cortina, mas todos os candelabros que dela se desprenderam. Todos. Na sequência daquele instante breve, um a um dos candelabros se colocou, exatamente, detrás do primeiro de todos, e se tornaram em um, apenas um.

Um imenso candelabro de seis hastes, três de cada lado. Reluzente, tão reluzente que nenhum olhar conseguia enxergar o que havia do outro lado. Tudo o que havia ou não havia do outro lado era apenas no campo da imaginação. Uns imaginavam uma coisa, e outros imaginavam outras. Alguns, vislumbravam imagens bem semelhantes e quase perfeitas; e outros, tudo o que viam era imagens diferenciadas, todas turvas e desconexas. Alguns, acreditavam ainda haver a montanha e o rio; outros, a montanha ou o rio; e outros, nem a montanha e nem o rio.

terça-feira, 5 de março de 2013

A névoa imponente II



Em grande expectativa, todos observavam o desfazer da névoa. Uma dissipação que se dava como um encantamento pronto a se manifestar diante do olhar admirado ou apavorado de cada um. Enquanto a névoa se dissipava, todas as imagens que nela se viam começaram a se movimentar, uma ao encontro da outra, até que se juntaram e se metamorfosearam em uma única e grande imagem. Apenas uma, e impressionante.

Envolto no resto de névoa, surgiu um imenso tapete suspenso numa altura de pouco mais de um centímetro do chão e que se estendeu para o alto, até se perder de vista. De dentro dos tapetes, entre os seus finos fios de algodão surgiram outros fios que se entrelaçaram e teceram um imenso candelabro dourado, e depois outro, e outro, e outro, e outro, e outro, e outro, todos do mesmo tamanho. Tudo numa velocidade de poucos segundos, enquanto uma parte da multidão admirava ainda mais, e, igualmente, outra parte se assustava.

Mas a perplexidade geral se deu quando um vento breve e repentino surgiu sobre aquele tapete e o transformou em uma imensa cortina em tons harmônicos e de beleza indescritível. Naquele momento, a névoa cessou de vez, e a imagem era agora perfeita e real, surgida aparentemente do nada: do espaço e do ar. Os fios tecidos pela névoa se confundiam com algo, um algo que permanecia sem nome. Ninguém conseguia decifrá-lo. Ninguém conseguia, a não ser admirar ainda mais, extasiados, enquanto outros se assustavam, apavorados.

sábado, 2 de março de 2013

A névoa imponente



Era impossível enxergar o que havia do outro lado. Tudo o que se via era uma névoa profunda semelhante a uma nuvem cheia de imagens que se desfazem e ressurgem em outras. (Você já viu nas nuvens imagens que se assemelham a rostos de pessoas? Você já viu nas paredes ou no chão imagens que se assemelham a rostos de pessoas, a imagens de animais, a qualquer coisa que parece ser mas que não é nem mesmo uma cópia do real?) Imagens bem efêmeras e que se desfazem por elas mesmas ou por algum vacilo do nosso olhar.

Tudo o que se enxergava eram imagens disformes naquela névoa cheia de movimentos turvos, imagens transfiguradoras. Mas ninguém conseguia enxergar o que havia detrás da névoa. A névoa, apesar de não ser matéria concreta, se impunha absoluta como infinita muralha do espaço e do tempo.

Do outro lado, havia o invisível. Tudo o que lá estava era invisível e inenarrável. Tudo o que se tinha de lá era o que o imaginário de cada um conseguia formar, visualizar, compor. Até que, pouco a pouco, a névoa foi se desfazendo. Pouco a pouco, a névoa se desfazendo. Pouco a pouco.

sexta-feira, 1 de março de 2013

Palavras (in)visíveis



Dentro do olhar
Palavras

Ocultas
Ilegíveis
Obscuras

Palavras infinitas
Exatas
Claras
Nossas

Dentro do olhar
Palavras

Intraduzíveis
Indeléveis
Intimas
Opacas

Palavras invisíveis
Intocáveis
Nossas.

Dentro do olhar
Palavras
Ora inabaláveis
Ora frágeis.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Um instante eternizado pelo cheiro



Quando ela retornou, anos depois, meses depois, dias depois, horas depois, viu que apenas alguns minutos haviam passado. A vida inteira dentro de alguns minutos. Ela, entregue a um tempo de tantas histórias ao redor de outros lugares, ao redor de outras pessoas, ao redor de outros sentimentos. Outros! Tudo ao seu redor, e ela ao redor de tudo, como se fosse muitas. Tudo muito perto e muito distante, não apenas de sua casa, não apenas de seu quarto, não apenas de seu travesseiro, não apenas dela mesma. Tudo, logo ao amanhecer, e ainda exalando um resto da fragrância do ontem.

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

A filha da pianista que não era



A menina atravessou a sala, tímida, muito tímida.

A menina atravessou a sala e sentou-se na cadeira do piano de cor negra que enfeitava o ambiente, contrastando com a sua absoluta falta de desejo de estar ali,

novamente exposta diante dos convidados dos pais, vaidosos pela filha que era a pianista da família, vislumbrados: a menina sentada ao piano com um vestido rodado, bem rodado e vermelho, e um imenso laço de fita branca no cabelo. Ela, enrubescida pelos aplausos na sala, e se sentindo tão desconfortável detrás de um adorno vermelho e ornamentado por um laço branco.

Depois, a sala silenciosa em plena reverência para o seu concerto. Naquele instante, aquela era a sala mais famosa da cidade.

Um dia...

Eles, os pais, repetiam,

Um dia, ela...

e ela, a menina, segurava a vontade de chorar e fingia ser completamente surda para não ouvir novamente aquelas palavras dos pais. Dentro do seu peito, a vontade de chorar permanecia guardada com os seus segredos.

Atordoada, ela tocou mais uma música, repetida tantas vezes a música, as músicas repetidas: tão poucas para os inúmeros concertos ovacionados pelos pais e pelos convidados disfarçados de plateia, a mãe, vaidosa pela filha pianista e que ela mesma nunca havia conseguido ser,

sublimava a sua própria fantasia,

num sorriso meio contente e meio áspero, meio feliz e meio frustrado pela menina que, bem antes daqueles dias, anos e anos atrás, era ela própria, num desejo inesquecível e opressor. Ela, a mãe, que nunca havia ganhado de presente um vestido rodado e vermelho, perfeitamente guardado em sua memória.

E agora, agora a filha exposta na vitrine diante dos convidados, enquanto os seus dedos pareciam adormecerem sobre o teclado, ela adormecendo, fugindo daquele lugar: uma vontade de ficar encantada e desaparecer daquela sala cheia de ilusões patéticas,

e a música, a música, que ela tanto amava quando sozinha, cada vez mais se transformava numa angústia dentro de seu coração: o seu desejo tão distante dali, os seus sonhos quase desaparecidos entre as teclas brancas e pretas do piano bem lustrado enfeitando a sala rodeada por cortinas de veludo vermelho, imaginárias, as cortinas, e adornadas pelo dourado que se apagava na menina cheia de outros segredos, guardados para um dia que ela ainda nem sabia quando. Um dia!

- um dia, compraremos um belo piano de cauda para ela!

E a menina tocava e chorava, tocava e chorava: aquela música repetida, a mesma música, repetida. Ela chorava e repetia as notas, pouco a pouco desafinadas, e o tédio. O tédio surgia cheio de garras e devorava a menina,

- tão emotiva!

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

O tapete e o véu


Desconfiara de que não estava ali a mesma pessoa de antes. Algo havia mudado. Algo pareceu estar se encaminhando para uma transfiguração, se ainda não o havia. Era a desconstrução de tudo o que ainda ontem havia sido narrado como uma das melhores coisas de sempre, das melhores afinidades, dos melhores refúgios, desde os seus instantes mais íngremes até o de maior contentamento. Ouviu tudo o que lhe fora compartilhado, atentamente, quase sem tempo para dizer alguma coisa que pudesse relativizar aquele olhar em plena metamorfose.

(- Como assim?)

De repente, o elo de aço evaporou-se. Já não era exatamente um elo de aço. Era um fio frágil. Era algo que apenas se assemelhava ao aço, mas não o era, pois a ferrugem surgia impetuosa enquanto o estado efêmero do ser e das coisas sustentava o resto de fio que ainda mantinha o elo.

(- Como assim?)

Lamentou, ao desconfiar de que havia surgido um caminho estranho e duvidoso pelo qual aquela voz parecia agora percorrer. Havia ali qualquer coisa estranha, pontilhada pela influência talvez velada, talvez direta, e talvez a fragilidade diante daquele presente Instante que fragmentava o seu Eu, espalhado pelo caminho que lhe surge coberto com um imenso tapete aveludado. Mas havia um véu. Um véu fingindo ser um caminho encantado.